Dolores

Se amados fossemos, todos os dias, enjoariamos rápido da vida. Sentada nessa cadeira marrom sem graça, sou mais amada do que jamais fui, pois amo-me com a lembrança de ter sido amada. Sinto o amor que só a memória pode dar. De dentro para dentro, amo-me como a faca que me rasga todos os dias, impiedosamente, até transformar tudo em feios amontoados de carne que apodrece rapidamente. E gosto de me assistir decompondo. Sinto um prazer imenso em masturbar minha superfície morta com a lâmina afiada da auto-comiseração e deixo escorrer líquido o prazer de me ver acabar aos poucos sobre a massa fétida dos meus restos. Então, espremo violentamente o sumo misturado de remorso, prazer, solidão e amor que dói, mais do que qualquer outra coisa, dói. Encharco com essa mistura ácida a matéria que já era inerte, para reavivar, de novo e mais uma vez, cada milímetro de superfície dolorida que ele tocar. E o ódio de nós para conosco queima, alto, forte, firme e hediondo. O segredo do amor é ignorar o combustível e olhar só para as chamas.
Não tenho vergonha de dizer que me faço mal. É assim que convivo comigo mesma e já fiz as pazes com Deus e a vida por terem me feito assim. Aceito que esta é a minha condição e é nela que devo existir. Já procurei saídas, mas aquilo que é da ordem do ser jamais some. Pelo contrário, permanece. E no permanente da dor eu renasço todos os dias. Eu sou aquela que merece a dor e esse privilégio é só meu.
Esqueci de propósito o dia em que nasci, não quero saber. Gosto de pensar que não nasci ainda. Vivo embrionariamente a dor de me dividir milhões de vezes por segundo, existindo no supracitado privilégio de reconhecer cada corte como posse. Quantos de vocês podem dizer que são donos da própria dor? Nenhum. Não. Só eu, nesse mundo todo, sei a extensão do doer humano. Sejam sinceros, olhando para mim, vocês não se sentem melhor? Eu me sinto. Gosto de olhar no espelho e desprezar o meu reflexo. Imagino como deve ser gostoso me olhar em terceira pessoa, assim, do jeito que vocês estão fazendo. Deve ser bom...
Se perguntarem por aí, meu nome é Dolores, mas eu inventei, porque combina mais comigo que Beatriz. Nunca fui casta. Nunca fui beata. Nunca fui luz. Se pudesse escolher teria nascido puta, filha da puta e aidética. Nasci irritantemente saudável. Fui posta no mundo para ser feliz. Recusei-me terminantemente todos os dias. Tenho orgulho de dizer que sou miserável. E no decorrer dos dias, convido o pior que há no mundo para adentrar as portas de minha vida. Abro as minhas pernas para qualquer um que me jurar o não-amor eterno. Gosto do gosto de sêmen frio. Prefiro que o sangue escorra pelas minhas pernas abortado. E no dia-a-dia, ando sempre pela esqueda, que é para ter o que responder quando me perguntarem: Por que essa cara amarrada?

sábado, 26 de julho de 2014 às 10:23 , 0 Comments

Auto-avalição

Agarro-me, com frequência, aos galhos mortos, nas ocasiões em que me penduro nos abismos. Tenho a impressão de que o suicídio, na forma como o pratico, não liberta, mas aprisiona. Prende, com garras melancólicas, obediente ao coração que deseja sofrer, para escapar da indiferença de viver o vazio que implica a si mesmo. Sei o que sou, e sei porque faço de mim o que quero ser. Descubro a cada dia o poder que tenho de multiplicar a agonia. Mas o que posso fazer, se gosto do vento gelado na pele? Vivo de saudade e é nela que me encontro, pois não pertenço ao presente. Realizo-me na intimidade do medo e da solidão, e sonhar faz parte da minha essência.
Hoje, percebo que estas palavras são a minha assinatura, minha marca registrada, meu símbolo. Meu mundo interior é um grande desfiladeiro, com o sol quase posto ao fundo, o mar abaixo revolto, que é para combinar com as nuvens de tempestade que vão só até o meio do céu, pois, quando olho para trás, quero ver estrelas. É aqui que eu encontro paz.
Por algum tempo me envergonhei de mim mesmo, como o faço com tudo na vida. Açoitei-me com palavras más, no silêncio dos meus desejos frustrados, para me fazer mártir. Me maltratei através dessa minha convicção cinza. Acredito que esta tenha sido uma etapa, a qual me levou lá longe, a ponto de voltar para perto, sempre temendo pelo tempo perdido. Vim até aqui, esta vida de onde escrevo. Não tenho intenção de me livrar dos cabelos grisalhos que cultivei na alma, a contragosto do destino. Tão pouco irei abrir mão da parte de mim que ri da vida e gosta de sorri para as pessoas, como forma de gratidão. Tenho, ao longo dos anos, sistematicamente ignorado essa última, em detrimento do mundo que eu gosto de sentir. Acho que posso dizer que começo a me entender um pouco melhor.
Irei me usar como bateria para mim mesmo. Toda felicidade que encontro é batizada pelo leve aspergir de dor que borrifo sobre ela. E é na beleza dos contrastes e da mente masoquista que carrego onde nascem as cores mais bonitas do mundo, para mim. Sigo pela vida, absorvendo o que de bom e ruim me convir. E que prazer isso me dá!

sexta-feira, 25 de julho de 2014 às 11:26 , 0 Comments

Quando ser água

As nuvens de chuva são, para mim, um bom lugar para se viver. Seria bom rodar, planando, por entre as gotas e a névoa escura. O calor dos raios faria a temperatura oscilar e, na dança do quente e frio do ar a meu redor, eu seria etéreo. E viveria a girar. Cada gota seria irmã, pai, mãe e eu de mim mesmo. Pulsaríamos uniformes de encontro ao destino que nos aguarda a todas as nuvens de chuva: chover. Choveríamos como chovem as tempestades mais intensas - lavando consigo o que há de descoberto no mundo. Levemente, cairíamos sobre o mundo cru, enquanto cada parte de mim faria o som da minha voz retumbar no clique-clique dos pingos de nós, quando tocássemos a pele honesta do que se nos oferecesse. Com nossas pernas líquidas correríamos as reentrâncias mais profundas da existência, numa costura intrincada, até formarmos o texto da vida-água de existir enquanto chuva que caiu; para, em seguida, no tempo que só a mãe d'água pode ditar, derretermo-nos em gás... Vento úmido de água evaporada que sobe quente, quente e quente até esfriar. E no esfriado de nosso corpo gasoso é que nos reconheceríamos como bailarinos no céu, confusos de nós mesmos como nós mesmos, embora certos do céu que a tudo cerca.
E é por isso que, hoje, quando olho para o céu, não me sinto mais só.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014 às 18:48 , 3 Comments