Olhei profundamente dentro de seus olhos, não encontrei. Há algum tempo ando reparando que estava descamando, só que eu também estava e acabei não dando importância. Virei o corpo vazio de um lado para o outro, procurando por onde tinha saído. Não encontrei nada: nenhum buraco, corte ou hematoma. Somente as antigas cicatrizes, deixadas para trás. Desapareceu no ar. Melancólico era aquela corpo. Inerte, completamente sem cor contra o chão de madeira. Nem os olhos, nem os cabelos, nem a pele, nem a língua, nem as unhas, nem o vestido, nem os sapatos: nada tinha cor. E não se mexia mais. Antes era uma bailarina absolutamente cansativa, dançava sem parar a mesma música, que cantava incessantemente. Parava para respirar de tempos em tempos, depois retomava. Os dias eram sempre nublados aqui, gostávamos disso, preferiamos assim. Tornei-me acostumado aos dias cinzas e acabei por tentar escurecê-los ainda mais. Ela não. Embora odiasse o sol, gostava das cores. Tentava sair daqui. Chegava até a ponta, até quase cair, mas voltava sempre, quebrada. A porcelana era frágil demais. Remendávamos aqui e ali, costurava com as minhas cordas e ela se entregava à música novamente. Eu, sempre sentado, pesado, preferia não me mover, não me dava conta de que era uma âncora cosida à ela. Rodopiava em volta de mim, me instigando ao movimento, saltando, gritando, aguda e vibrante. Confesso que tive vontade, mas não coragem. E o ciclo continuou. E os dias se escureciam. E eu parei de me importar. Olhei para o outro lado, procurando alguma novidade. Arrastei-me pra longe dela, achei que não iria embora, estaria ali quando voltasse. Agora que voltei, eis como a encontro. Primeiro pensei em traição, ela arrumou um jeito de ir e me deixou para trás, amarrado à essa concha cheia de lembranças, mas vazia de consciência. Porém, investigando melhor, descobri que não foi consciente. A cada volta, a cada respiração, a cada pirueta e salto, ela partia. Pelos poros, pela saliva, pelo suor, sua essência foi-se com o tempo. Não é que ela tenha fugido, é só que, ela esse corpo não era mais seu, e eu não reparei. Agora, ela é adequada para viver no mundo de lá. Ela transcendeu para o lugar onde todos que passam por aqui vão, e eu fiquei. Daqui, consigo enxergar uma silhueta borrada, flashes em negro e vermelho, do lado de lá do vidro. Esforço meus olhos e meus sentidos para entender o que está acontecendo. Enquanto isso, os flashes ficam cada vez mais escassos, e eu, desconfio que nunca mais chegarei a vê-la novamente.
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