Ser só

Vivendo descobri que o cansaço só pesa para o lado certo, em direção aos abismos tudo é mais leve. Ficar parado é sobreviver e se mover é um risco. Qualquer direção é dolorosa, porém, em algumas há momentos de beleza infinita e amor palpável, intenso. Nunca escolhi um caminho assim. Tenho notícias, lendas, rumores. Por onde ando vejo sonhos como nuvens: distantes, etéreos, às vezes belos, outras vezes tempestuosos, mas sempre vivos. Absorvo-os, vivo-os e alimento-me à distância, depois sigo andando. Nunca toquei nada. Percebo agora que sou eu quem é feito de alguma substância gasosa. De tanto me dobrar para dentro, joguei fora a matéria sólida. Meu corpo e meus instintos se atrofiaram assim que aprendi a fugir. Só sei correr para o lado errado. Gosto de sentir o vento forte, a terra bruta sob os pés, é só o que conheço. Aprendi a imaginar vidas diversas nos contornos sombrios que se formam entre as silhuetas das árvores. O cheiro podre da decomposição já é familiar, fico desconcertado quando ele some. Não sei agir quando há sol. Finjo de morto ou me desespero. Sinto a pele queimar, o rosto se desfigurar e a gordura se desprender de minha enorme barriga, escorrendo pelas pernas. Derreto monstruosamente e consciente disso. Não suporto que me vejam assim, e é assim, apenas, que me vêem. É tudo que sei mostrar, meu único reflexo: irrefreável, involuntário. Às vezes tento, inutilmente, segurar esse meu eu liquido com as mãos, mas escorro por entre dedos temerosos, diluído em lágrimas sutilmente disfarçadas e suor fétido. Quando o sol se põe, volto correndo para as sombras. Congelo. Endureço até não poder me mover mais e quando acho que finalmente aprendi a viver estático, o sangue frio exige calor. Queria ser como essas árvores: fixo, estável, mas principalmente, coerente. Não sou o que deveria ser, e também não sou como não deveria ser. Não pertenço à nenhum lugar, à ninguém. Não faço parte dessa vida e ainda assim, não tenho escolha, não há para onde ir. Não, não, não. Minha vida sempre foi, e desconfio que sempre será, um grande NÃO. Até que eu me conforme e aceite que a resposta para todas as minhas perguntas é a mais óbvia, e é aí que todos as peças se encaixam. Olho com uma inveja destrutiva para o mundo. Destruo o máximo de sonhos e alegrias que consigo. Infecto à todos que consigo alcançar. Passo pela vida como uma doença. Na luta pela sobrevivência, ocupo cada espaço, infiltro-me em cada célula, cada vaso, cada órgão... até o fim. Depois, saio rasgando a pele e ando curvado em busca de um novo hospedeiro. Deixo para trás olhos enjoados, corpos alérgicos e arrepios de repulsa. Sou indesejado e inevitável. Não sei como é para as pessoas a minha existência, no entanto, para mim, é esmagadora. Um verme não escolhe ser um verme, ele é, e à partir de ser, não há mais volta. Depois de nascer, todos temos de lidar com estar presente hoje, nesse lugar, dessa maneira, junto dessas pessoas. Há aqueles que voam leves e graciosos por cima, outros, escorregam pelas frestas e deslizam viscosos por atalhos escondidos. A grande maioria se junta em um estouro de manada e sai passando por cima de tudo no caminho. Amassados uns contra os outros, só lhes é permitido olhar para frente, um só desvio e você é pisoteado. E existem aqueles como eu, parasitas, que existem por acidente. Erros que não se encaixam no grupo dos erros. Ilhas isoladas e tóxicas, de olhos enormes, condenados a viver afogados em um mar de desejos incinerantes, olhando de longe e torturando violentamente tudo que ouse chegar perto demais. Como é impossível se acostumar à dor, o corpo esquece como é ser gentil. O grande mal da vida não é a morte, é não poder escapar de si mesmo.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012 às 18:38 , 1 Comment